“Privar uma criança de brincar é privá-la do prazer de viver”
Françoise Dolto
«Actualmente vivemos numa sociedade em que
tudo se faz “a correr”… O tempo é um bem precioso e a gestão do mesmo
acaba por ser uma arte de mestria. Esta constante vivência em
“correria”, onde tudo é agendado ao minuto, contamina inevitavelmente o
dia-a-dia das crianças, preenchido pela presença no jardim-de-infância
ou na escola, e, simultaneamente, em inúmeras actividades
extra-curriculares. A própria evolução urbanística conduz a uma vivência
confinada a espaços físicos restritos e limitados (exp: o apartamento e
os edifícios citadinos em que se situam os jardins de infância, escolas
e pátios de recreio), acompanhados de muitas regras constantes e
restritivas: “Está quieto”, “Não mexas nisso”, “Não te sentes no chão”,
que “bombardeiam” as crianças todos os dias.
Também esta “pressa” e ânsia de acelerar
processos que deveriam ser naturais ao longo do crescimento, conduz a um
contacto cada vez mais precoce com aprendizagens excessivamente
escolares (ainda em período pré-escolar), em detrimento de outras, que
contribuem para a aquisição e desenvolvimento de competências
psicossociais e de auto-regulação emocional. Mais importante do que
saber ler, escrever ou contar quando se entra na escola, é fundamental
aquirir e construir previamente uma matriz psicossocial individual
segura, capaz de receber e transformar esses conteúdos escolares. Esta
matriz passa por a criança ser minimamente autónoma e confiante para
estar numa sala de aulas, respeitar figuras de autoridade e regras
estabelecidas, interagir/comunicar com os outros (professor,
funcionários, colegas, etc), colocar dúvidas, fazer perguntas, tomar
decisões, criar soluções e resolver problemas.
Assim, frequentemente a actividade por excelência que as caracteriza – o brincar
– fica esquecida no meio da rotina e da vivência diárias. Durante muito
tempo pensou-se que brincar não teria utilidade biológica ou social,
mas na realidade, brincar é, por excelência, um dos fenómenos mais
comuns e naturais da infância, assumindo-se como uma forma de
estabelecer interacções sociais e um meio poderoso de aprendizagem sobre
o mundo. Ora, tal actividade fundamental não é específica do Homem,
sendo igualmente partilhada por outras espécies.
Desta forma, a actividade lúdica permite estabelecer um elo de ligação entre as crianças
sendo um poderoso auxiliar na construção da relação com os outros e com
o meio que as rodeia.
Detentora de um papel fundamental no
desenvolvimento emocional, cognitivo e social, possibilita a estimulação
da criatividade e o desenvolvimento da autonomia, da linguagem e de papéis sociais (fundamentais para a vida adulta), dotando a criança de maiores capacidades para pensar e resolver problemas.
De facto, através do brincar a criança vai-se familiarizando com as
regras sociais e tomando contacto com experiências novas: ela explora,
pesquisa, experimenta e aprende.
Experimenta com relativa segurança
ou com o mínimo de riscos (porque são situações puramente imaginárias)
novos comportamentos físicos ou sociais, num contexto familiar e
contentor, com a vantagem dos comportamentos lúdicos serem, em grande
parte revogáveis: o que se faz “a brincar” não tem as consequências
habituais de um comportamento semelhante feito “a sério”. O jogo é algo
com impunidade relativa e características não sérias. Toda e qualquer
brincadeira requer que as crianças tenham consciência destes aspectos e
que emitam e reconheçam o sinal que se traduz por: “isto é uma
brincadeira…”.
Brincar permite ainda que a criança se mantenha fisicamente activa, que desenvolva a personalidade e as competências sociais, ajudando-a a lidar com emoções e sentimentos, possibilitando:
- encenar experiências emocionais (por exemplo: separação dos pais,
situações de luto, alterações significativas na vida da criança,
sentimentos de alegria, tristeza, ciúme, medo, etc);
- “libertar” tensões (por exemplo: alívio da dor, desconforto, frustração);
- pesquisar (observar, explorar, descobrir);
- treinar as competências de autonomia e de independência (actividade
espontânea e voluntária, implicando empenhamento activo por parte da
criança);
- divertir-se (sem objectivos específicos, apenas algo agradável e positivo).
À medida que a criança cresce, assiste-se a
uma evolução social de situações em que brinca sozinha, para
brincadeiras cada vez mais cooperativas. Ser, ter, fazer, tomar, dar,
amar, odiar, viver, morrer, todos estes verbos não ganham sentido senão
através do jogo. O brincar assume, desta forma, uma preparação para as acções e comportamentos da idade adulta.
Por tudo isto, para além do espaço do
jardim de infância/escola e das actividades extra-curriculares
(predomínio das regras e de momentos organizados/estruturados) é também
fundamental:
- Aceitar e ter em conta que o brincar está presente desde o nascimento.
Antes do aparecimento da linguagem a criança já comunica com os adultos
através da mímica, nos gestos, nas actividades corporais e sensoriais.
Por volta dos 3 meses um dos primeiros jogos com o adulto é o de
esconder o rosto e mostrá-lo de novo, depois surgem actividades de
exploração e manipulação dos objectos do meio, jogos em torno do ter e
guardar (encher objectos com coisas que se transportam), e, mais tarde,
jogos de fazer coisas (puzzles, construções). A partir da idade em que a
criança começa a andar é necessário destacar em especial os jogos com
água, areia, ou terra, aos jogos de enchimento e de esvaziamento de
recipientes. Este é o momento da explosão da curiosidade investigadora e
manipuladora dos objectos, tudo suscita perguntas e tudo se tenta
agarrar, despedaçar, fragmentar.
- Variar os brinquedos da criança. Quando a criança já
descobriu as dificuldades de um jogo e as ultrapassou, poucas são as
surpresas ou interrogações. É preciso variar os brinquedos e jogos de
forma a estimular os sentidos, a criatividade e a inteligência da
criança. Pode-se tentar fazer troca de brinquedos com outras crianças ou
procurar ludotecas que ajudem nesse sentido. (Nota: aqui entendem-se
jogos de ludoteca os livros para crianças, os jogos de construção, os
jogos de motricidade, inventivos, criativos, de lógica, etc; não são de
forma alguma incluídos os peluches, a boneca preferida, enfim, os
brinquedos que são “os primeiros amores” da criança, que ela usa para
adormecer, ou para se acalmar quando os pais estão ausentes).
- Reforçar com os pais que o “tempo de qualidade” para a brincadeira é preferível ao “tempo de quantidade”.
São preferíveis 15/20 m., por exemplo, em que os pais apenas focam a
sua atenção no estar e brincar com a criança, do que ter 3 horas em que,
no meio de outras tarefas, se vai falando e interagindo. Esses momentos
de “qualidade” podem mesmo ser combinados com a criança, de modo a que
esta perceba que, nesse tempo, o adulto vai estar disponível só para si.
- A brincadeira não deve ter muitos “nãos” (por exemplo: “não
corras”, “não saltes”, etc). Para brincar a criança tem que se sentir
numa atmosfera segura e de não ameaça, portanto, a guarda contínua dos
pais e/ou educadores podem dificultar a tarefa espontânea de brincar. As
crianças precisam de limites para se sentirem seguras, mas isso não
significa que não possam exprimir os seus desejos, as suas alegrias e as
suas tristezas (que devem ser ouvidas pelo adulto).
- Brincar ao ar livre, onde podem ser efectuadas actividades
diferentes das realizadas no espaço físico limitado da casa, ou do
jardim de infância/escola. O espaço envolvente representa para as
crianças um desejo muito intenso, é a ânsia de mover-se, correr,
descobrir coisas novas, enfim… sentir a vida quase através dos “poros da
pele”. Porém, deve também ter-se em conta que algumas crianças brincam
ficando apenas a olhar, ouvir, cheirar, sentir. São prazeres passivos,
inteligentes, observadores, e, por vezes, mesmo meditativos.
- Reduzir a pressão na aprendizagem de conteúdos escolares, ainda no período pré-escolar.
Nesta fase o que se torna realmente necessário é que a criança brinque,
consiga enquadrar-se e socializar com o grupo, que respeite as regras
da sala, que aprenda a ouvir os outros, que se concentre numa actividade
(jogo, desenho, história, etc) e a conclua dentro das suas capacidades,
que desenvolva a motricidade, a criatividade e a capacidade de pensar
sobre as coisas. Basicamente a criança necessita de crescer, ganhar
maturidade e competências pessoais e sociais, para futuramente, estar
mentalmente disponível para aprender a ler, escrever e contar, quando
chegar o momento de ingressar na escola.»